Desde que comecei
a trabalhar aqui no Lux que sabia que, nestes primeiros meses, apenas faria substituições
de baixas ou férias, o que invariavelmente me levaria a trabalhar, a cada
semana, em locais diferentes e com horários diversos. E de facto é o que tem
acontecido. No entanto, salvé a minha estrelinha da sorte luxemburguesa, todos
os locais por onde tenho passado até então ficam situados em Luxembourg-Ville,
que é como quem diz a capital aqui do Grão-Ducado com o mesmo nome, e que os
tugas, sempre práticos, tratam simplesmente por “Vila”. Ora, têm sido semanas e
semanas a fazer o trajecto Rodange (a santa terrinha aqui da “je”) – Vila e
vice-versa. Para fazer estas viagens, há duas possibilidades de transportes
públicos : o comboio e o autocarro. A minha escolha tem sido quase sempre
o comboio. E porquê ?
Em primeiro lugar
pela paixão que tenho por viagens de comboio, facto que creio dever-se,
indubitavelmente, às longas e maravilhosas viagens que fiz durante tantos
verões com o meu querido paizinho para a Figueira da Foz, sempre em busca de um
belo dia de pesca e de praia. E sempre que, aqui, entro no comboio vêm-me à
memória os sons das carruagens em curso, Mondego fora, e das ondas a bater
contra as rochas do Molho do Cabedelo; os cheiros a maresia e a pele salgada a
tostar ao sol; a imagem do meu pai, em tronco nú e de boné do Sporting na
cabeça, a lançar a cana com toda a força e confiança. E por mais que, aqui,
chova ou faça frio, estas lembranças tornam as viagens em agradáveis passeios
estivais.
Para além disto,
gosto de viajar de comboio porque é tranquilo, porque há sempre muitos lugares
disponíveis, porque posso ler livros inteiros sem me sentir enjoada, porque
posso encostar a cabeça na janela e dormir uma soneca. E claro, porque os
horários dos comboios têm sido sempre mais compatíveis com os meus horários de
trabalho. E andar de comboio vinha a tornar-se algo tão normal para mim como
conduzir o meu « Ronaldo Clio » por essas ruas conimbricenses. Já
estava a assimilar os cheiros, a identificar os habituais revisores de bilhetes
e até a reconhecer as “minhas colegas” de carruagem, a saber de cor as suas
paragens. Estava já quase tentada a chamá-las de amigas, tanto que já sabia das
suas vidas pessoais e profissionais, não porque elas me contassem, mas porque
contavam a toda a gente que seguia na mesma carruagem, de tão alto que falavam.
Mas eis que esta
semana a minha chefe me alterou o horário de trabalho e, com essa simples
decisão de me fazer entrar e sair mais tarde meia hora, fez-me descobrir todo
um espectacular novo mundo de viagens trabalho-casa. E que viagens!!!
O regresso a casa
passou a ser feito, ao longo desta semana, de autocarro. E com autocarro eu
quero mesmo dizer “camioneta-carreira”. O famoso 212, que as 22H10 sai da
Avenue Emile Reuter, numa “animação” extraordinária.
A história do 212
é simples : Há anos largos que leva e traz e traz e leva dezenas de tugas
da Vila para o sudoeste, ali onde Luxemburgo, Bélgica e França traçam um
triângulo fronteiriço quase amoroso, e do sudoeste para a Vila. A Maria João,
senhora muito simpática na casa nos sessenta anos, faz esta viagem diariamente
há 28 anos. O que, por si só, lhe devia dar direito a um lugar especial ao lado
do condutor, tal como nas excursões do antigamente. À mesma hora, as tugas
entram, cumprimentam-se, perguntam pela família, trocam opiniões e desabafos
sobre os seus respectivos locais de trabalho, bem conhecidos pelas outras
passageiras. E se uma delas chega atrasada, lá pedem ao motorista que “espere
só mais 2 minutos, de certeza que ela perdeu o autocarro até aqui”. E o
motorista espera, porque afinal de contas são muitos dias, muitos meses, muitos
anos a levar estas senhoras para os seus lares ao final de mais um dia de
lavoura. Mas as tugas, nos dias que correm, já só ( ?) representam 60% das
ocupantes do 212. Os restantes 40% são, metade – metade, francesas e JRR
(Jugoslavas, Russas e Romenas). E é aqui que começa a animação. As francesas
ocupam quase sempre os mesmos lugares na traseira do autocarro, falam e riem
muito alto mas, habituadas que estão à soberania das tugas, entram,
cumprimentam, e seguem viagem sem grandes confusões. Já as JRR, passageiras
muito recentes do 212, meteram na cabeça que “isto dos tugas mandarem nesta
merda toda” tem de acabar e resolveram declarar guerra à soberania das tugas do
sudoeste luxemburguês. Pois então que as JRR que chegam mais cedo entram no
bus, sentam-se sempre nos mesmos lugares e, prevendo a chegada mais tardia de
algumas comparsas, reservam com os seus sacos os lugares próximos aos delas,
como quem delimita uma fronteira transparente mas tão visivel aos olhos de
quem, como eu, embarca no 212 pela primeira vez. Obviamente que as tugas, revoltadas
e reivindicativas de nascença, não veem com bons olhos esta atitude. E como
boas tugas que são, toca de levar a guerra avante, “que a nós ninguém nos come
por parvas”. E então é vê-las a entrar bus dentro, de peito feito, passando
pelos lugares dianteiros ainda vazios, até à zona central à procura dos bancos “reservados”.
E é vê-las com a maior cara de pau a exclamar, em francês, “olha, está aqui um
saco!” e a perguntar, desentendidas, em francês “mas de quem é este saco?”,
enquanto vão pegando no saco, pondo no chão e sentando-se como se fosse a
primeira vez que acontece e como se não soubessem a quem pertence o dito cujo. Logo
de seguida, e já aconchegadas, é ouvi-las a espingardear, em bom português. “Puta
que pariu as jugoslavas, e as romenas ou lá o caralho que elas são, andam há
meia dúzia de dias no 212 e já pensam que esta merda é toda delas, e reservam
lugares e o caralho. Foda-se, querem andar com lugares reservados, venham
trabalhar de limousine, que esta merda é um transporte público, e nós já vamos
nele há muitos anos, olha o caralho!!!”. E as JRR reviram aqueles olhos
perigosos como só elas, e é ouvi-las também a espingardear, mesmo sem entender
patavina do que elas dizem mas captando todo o clima de tensão nas suas
palavras. Um clima que piora sempre que as JRR atrasadas entram no Bus e
percebem que o raio das tugas já se armaram outra vez aos cágados, e lá vão
elas também a espingardear para a traseira do autocarro, gramar com as
francesas barulhentas. E uma pessoa percebe que a tensão vai aumentando quando,
apesar de não compreender maior parte do que as JRR dizem, vai escutando um “nervosa”
e crendo que em jugoslava ou russo ou romeno o significado é o mesmo que em
português, a coisa só pode estar a ficar feia. E as restantes tugas ao ouvirem
aquela palavra tão conhecida viram imediatamente a cara para a janela e, enquanto
relembram as JRR da sua antiguidade naquele autocarro, vão soltando mais uma
data de impropérios até o 212 iniciar mais uma viagem das 10 e 10 (da noite).
E o resto da
viagem faz-se por entre as gargalhadas sonoras das francesas, as reclamações
das tugas e as “rosnadelas” das JRR que, não querendo parecer racista, têm
todas ar de assassinas em série. E chegadas ao destino final, tugas e JRR saem
do bus 212, trocam olhar ameaçadores e seguem caminhos diferentes com a
promessa de uma nova batalha na próxima viagem.
E eu saio do
autocarro, acendo um cigarro e enquanto sigo o meu caminho até casa vou lembrando
a mim própria como é magnífico andar de comboio, lendo o Predadores da fantástica Martina Cole ou aprimorando o francês com estudo
do livrinho que a amiga Paula emprestou, com a tranquilidade necessária para
descansar o corpo e a cabeça de mais um dia cansativo de trabalho.
Mas depois apago
o cigarro, solto um sorriso e penso que, mesmo que a minha chefe me volte a
colocar num horário mais cedo e mais compatível com o comboio, tenho de voltar
uma vez ou outra ao 212, na esperança de que um dia a batalha vire coisa séria e
as tugas e as JRR se peguem ao estalo e ao murro numa gritaria pegada em pleno autocarro.
E nesse dia, vou juntar-me às francesas e às suas gargalhadas estridentes,
enquanto aguardo uma vitória portuguesa. Não é que eu seja racista, mas é que
essa coisa de lugares marcados para os(as) amigos(as) sempre me irritou
profundamente.
Alors, mes amies,
que la bataille commence!!!
Bisous ;)