sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Que la bataille commence! (ou a crónica das viagens nos transportes públicos luxemburgueses… )



Desde que comecei a trabalhar aqui no Lux que sabia que, nestes primeiros meses, apenas faria substituições de baixas ou férias, o que invariavelmente me levaria a trabalhar, a cada semana, em locais diferentes e com horários diversos. E de facto é o que tem acontecido. No entanto, salvé a minha estrelinha da sorte luxemburguesa, todos os locais por onde tenho passado até então ficam situados em Luxembourg-Ville, que é como quem diz a capital aqui do Grão-Ducado com o mesmo nome, e que os tugas, sempre práticos, tratam simplesmente por “Vila”. Ora, têm sido semanas e semanas a fazer o trajecto Rodange (a santa terrinha aqui da “je”) – Vila e vice-versa. Para fazer estas viagens, há duas possibilidades de transportes públicos : o comboio e o autocarro. A minha escolha tem sido quase sempre o comboio. E porquê ?

Em primeiro lugar pela paixão que tenho por viagens de comboio, facto que creio dever-se, indubitavelmente, às longas e maravilhosas viagens que fiz durante tantos verões com o meu querido paizinho para a Figueira da Foz, sempre em busca de um belo dia de pesca e de praia. E sempre que, aqui, entro no comboio vêm-me à memória os sons das carruagens em curso, Mondego fora, e das ondas a bater contra as rochas do Molho do Cabedelo; os cheiros a maresia e a pele salgada a tostar ao sol; a imagem do meu pai, em tronco nú e de boné do Sporting na cabeça, a lançar a cana com toda a força e confiança. E por mais que, aqui, chova ou faça frio, estas lembranças tornam as viagens em agradáveis passeios estivais.
Para além disto, gosto de viajar de comboio porque é tranquilo, porque há sempre muitos lugares disponíveis, porque posso ler livros inteiros sem me sentir enjoada, porque posso encostar a cabeça na janela e dormir uma soneca. E claro, porque os horários dos comboios têm sido sempre mais compatíveis com os meus horários de trabalho. E andar de comboio vinha a tornar-se algo tão normal para mim como conduzir o meu « Ronaldo Clio » por essas ruas conimbricenses. Já estava a assimilar os cheiros, a identificar os habituais revisores de bilhetes e até a reconhecer as “minhas colegas” de carruagem, a saber de cor as suas paragens. Estava já quase tentada a chamá-las de amigas, tanto que já sabia das suas vidas pessoais e profissionais, não porque elas me contassem, mas porque contavam a toda a gente que seguia na mesma carruagem, de tão alto que falavam.
Mas eis que esta semana a minha chefe me alterou o horário de trabalho e, com essa simples decisão de me fazer entrar e sair mais tarde meia hora, fez-me descobrir todo um espectacular novo mundo de viagens trabalho-casa. E que viagens!!!

O regresso a casa passou a ser feito, ao longo desta semana, de autocarro. E com autocarro eu quero mesmo dizer “camioneta-carreira”. O famoso 212, que as 22H10 sai da Avenue Emile Reuter, numa “animação” extraordinária. 

A história do 212 é simples : Há anos largos que leva e traz e traz e leva dezenas de tugas da Vila para o sudoeste, ali onde Luxemburgo, Bélgica e França traçam um triângulo fronteiriço quase amoroso, e do sudoeste para a Vila. A Maria João, senhora muito simpática na casa nos sessenta anos, faz esta viagem diariamente há 28 anos. O que, por si só, lhe devia dar direito a um lugar especial ao lado do condutor, tal como nas excursões do antigamente. À mesma hora, as tugas entram, cumprimentam-se, perguntam pela família, trocam opiniões e desabafos sobre os seus respectivos locais de trabalho, bem conhecidos pelas outras passageiras. E se uma delas chega atrasada, lá pedem ao motorista que “espere só mais 2 minutos, de certeza que ela perdeu o autocarro até aqui”. E o motorista espera, porque afinal de contas são muitos dias, muitos meses, muitos anos a levar estas senhoras para os seus lares ao final de mais um dia de lavoura. Mas as tugas, nos dias que correm, já só ( ?) representam 60% das ocupantes do 212. Os restantes 40% são, metade – metade, francesas e JRR (Jugoslavas, Russas e Romenas). E é aqui que começa a animação. As francesas ocupam quase sempre os mesmos lugares na traseira do autocarro, falam e riem muito alto mas, habituadas que estão à soberania das tugas, entram, cumprimentam, e seguem viagem sem grandes confusões. Já as JRR, passageiras muito recentes do 212, meteram na cabeça que “isto dos tugas mandarem nesta merda toda” tem de acabar e resolveram declarar guerra à soberania das tugas do sudoeste luxemburguês. Pois então que as JRR que chegam mais cedo entram no bus, sentam-se sempre nos mesmos lugares e, prevendo a chegada mais tardia de algumas comparsas, reservam com os seus sacos os lugares próximos aos delas, como quem delimita uma fronteira transparente mas tão visivel aos olhos de quem, como eu, embarca no 212 pela primeira vez. Obviamente que as tugas, revoltadas e reivindicativas de nascença, não veem com bons olhos esta atitude. E como boas tugas que são, toca de levar a guerra avante, “que a nós ninguém nos come por parvas”. E então é vê-las a entrar bus dentro, de peito feito, passando pelos lugares dianteiros ainda vazios, até à zona central à procura dos bancos “reservados”. E é vê-las com a maior cara de pau a exclamar, em francês, “olha, está aqui um saco!” e a perguntar, desentendidas, em francês “mas de quem é este saco?”, enquanto vão pegando no saco, pondo no chão e sentando-se como se fosse a primeira vez que acontece e como se não soubessem a quem pertence o dito cujo. Logo de seguida, e já aconchegadas, é ouvi-las a espingardear, em bom português. “Puta que pariu as jugoslavas, e as romenas ou lá o caralho que elas são, andam há meia dúzia de dias no 212 e já pensam que esta merda é toda delas, e reservam lugares e o caralho. Foda-se, querem andar com lugares reservados, venham trabalhar de limousine, que esta merda é um transporte público, e nós já vamos nele há muitos anos, olha o caralho!!!”. E as JRR reviram aqueles olhos perigosos como só elas, e é ouvi-las também a espingardear, mesmo sem entender patavina do que elas dizem mas captando todo o clima de tensão nas suas palavras. Um clima que piora sempre que as JRR atrasadas entram no Bus e percebem que o raio das tugas já se armaram outra vez aos cágados, e lá vão elas também a espingardear para a traseira do autocarro, gramar com as francesas barulhentas. E uma pessoa percebe que a tensão vai aumentando quando, apesar de não compreender maior parte do que as JRR dizem, vai escutando um “nervosa” e crendo que em jugoslava ou russo ou romeno o significado é o mesmo que em português, a coisa só pode estar a ficar feia. E as restantes tugas ao ouvirem aquela palavra tão conhecida viram imediatamente a cara para a janela e, enquanto relembram as JRR da sua antiguidade naquele autocarro, vão soltando mais uma data de impropérios até o 212 iniciar mais uma viagem das 10 e 10 (da noite).

E o resto da viagem faz-se por entre as gargalhadas sonoras das francesas, as reclamações das tugas e as “rosnadelas” das JRR que, não querendo parecer racista, têm todas ar de assassinas em série. E chegadas ao destino final, tugas e JRR saem do bus 212, trocam olhar ameaçadores e seguem caminhos diferentes com a promessa de uma nova batalha na próxima viagem. 

E eu saio do autocarro, acendo um cigarro e enquanto sigo o meu caminho até casa vou lembrando a mim própria como é magnífico andar de comboio, lendo o Predadores da fantástica Martina Cole ou aprimorando o francês com estudo do livrinho que a amiga Paula emprestou, com a tranquilidade necessária para descansar o corpo e a cabeça de mais um dia cansativo de trabalho. 

Mas depois apago o cigarro, solto um sorriso e penso que, mesmo que a minha chefe me volte a colocar num horário mais cedo e mais compatível com o comboio, tenho de voltar uma vez ou outra ao 212, na esperança de que um dia a batalha vire coisa séria e as tugas e as JRR se peguem ao estalo e ao murro numa gritaria pegada em pleno autocarro. E nesse dia, vou juntar-me às francesas e às suas gargalhadas estridentes, enquanto aguardo uma vitória portuguesa. Não é que eu seja racista, mas é que essa coisa de lugares marcados para os(as) amigos(as) sempre me irritou profundamente.

Alors, mes amies, que la bataille commence!!!


Bisous ;)


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